Em seu livro ‘The audible past’, Sterne (2003) desenvolve e amplia o panorama histórico relacionado ao som, tecnologia e cultura, alcançando instâncias anteriores às tecnologias de reprodução sonora. Ao tratar suas origens, Sterne estabelece uma rede associativa com práticas, idéias e mecanismos do passado, examina as condições sócio-culturais que deram origem a estas tecnologias e verifica como estas tecnologias se cristalizam e se combinam com grandes correntes culturais. Define as tecnologias de reprodução sonora como artefatos resultantes de transformações na compreensão da natureza do som, ouvido humano, ato de ouvir e prática da escuta.
Através de técnicas auditivas, o ouvinte modificou sua percepção a serviço da racionalidade. Técnicas desenvolvidas por médicos e telegrafistas, por exemplo, definiram as características constitutivas da medicina e burocracia. Com a exploração e o cultivo dos sentimentos humanos, ‘o homem se tornou objeto’ a ser moldado e orientado nos processos históricos e sociais. Ao mesmo tempo, as tecnologias ‘assumem um papel importante na vida das pessoas. Tecnologias são processos materiais, culturais e sociais repetidos e cristalizados em mecanismos’ (Sterne, 2003). Frequentemente, estes mecanismos executam trabalhos que foram previamente realizados por pessoas, novas funções desenvolvidas ou outras relacionadas a práticas culturais. A estas atividades, Latour se refere como programas de ação. O ser humano projeta e utiliza tecnologia para intensificar ou promover certas atividades e desencorajar outras.
‘Tecnologias estão associadas a hábitos, algumas vezes cristalizando estes hábitos e outras vezes habilitando-os. As tecnologias incorporam em forma física disposições e tendências particulares...’ (Sterne, 2003, p. 8). Segundo ele, um estudo sério de tecnologias requer uma conexão com a prática, habitat e hábitos humanos, e também uma atenção a campos de atividades físicas, sociais e culturais combinadas. Esta combinação de campos recebe a denominação de rede ou estrutura conjunta, de onde as tecnologias emergem e da qual elas fazem parte.
A tecnologia, segundo Sterne (2003), envolve não apenas cristalizações resultantes da técnica, mas também o próprio corpo humano com seu formato e funcionamento próprios que servem de base para a construção de mecanismos. Além disso, o homem também estende a mídia como canal de propagação e como elemento de interferência na tecnologia.
‘Este é um ponto importante para a história da tecnologia da comunicação: o corpo é a primeira tecnologia da comunicação e todas as tecnologias do ouvinte discutidas surgem das técnicas do ouvinte... Se a mídia estende nossos sentidos, ela o faz como versões cristalizadas e aprimoramentos de práticas (técnicas) anteriores envolvendo o uso dos sentidos...’ (Sterne, 2003, p. 92), constituindo uma rede de relações sociais e tecnológicas.
Latour (1994) tem uma concepção de mídia semelhante. Relaciona programas de ação - séries de objetivos, passos e intenções – tanto a sujeitos como objetos, ambos podendo ser considerados como agentes-atores, onde os objetos são actantes, que atuam em rede. Ambos tem importância para o processo de mediação. Ao propor, além de um caráter materialista onde os componentes materiais são irredutíveis às qualidades do homem ou sociológico com uma preponderância do caráter ou estado moral do homem, uma visão humanista (que considera os seres humanos como possuidores de capacidades psicológicas flutuantes e sujeitas a mudanças de comportamento resultantes do contato e/ou utilização de ferramentas ou tecnologias) onde ocorre uma fusão entre os agentes (agentes compostos ou composições de agentes), Latour (1994) parece indicar uma relação íntima entre técnica e tecnologia.
Na tecnologia mp3, por exemplo, temos uma simulação da técnica auditiva humana, uma reprodução do nosso modo de ouvir. O mp3 ouve por nós. De forma semelhante, com as portas automáticas, exemplo de Latour citado por Sterne, o ser humano deixa de realizar uma ação que é absorvida pelo mecanismo.
Esta relação entre técnica e tecnologia também é sublinhada com a modificação de caráter dos agentes-atores envolvidos no processo que ocorre na mediação como delegação. Este tipo de mediação está associado ao mecanismo de identificação, quando um ator é transportado para a pele de outro ator, retirado do cenário que ele ocupa normalmente, resultando em delegações mutáveis de ator para outras estruturas compositivas de referência.
Consideremos também o phonautograph. Ele não é um ouvinte, mas um ouvinte adormecido que traduz os sons em representações gráficas. Aqui, temos inclusive a materialização da técnica do ouvido como símbolo e presença, ou seria a inclusão no mecanismo de uma tecnologia que nos é inerente?
Latour, B., On technical mediation: philosophy, sociology and genealogy, In: Common knowledge, vol. 3, nº 2, pp. 29-64, 1994.
Sterne, J., The Audible Past: Cultural Origins of. Sound Reproduction. Duke University Press: Durham & London, 2003.
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