domingo, 24 de maio de 2009

Sample na cultura digital: reconfiguração do conceito de autor

O reconhecimento do DJ como autor é um reflexo das modificações sócio-culturais pelas quais passamos, onde, a partir dos primeiros lançamentos do hip-hop e house, já era possível notar uma erosão rápida do culto da personalidade do artista com os produtores e DJs assumindo a posição de novas estrelas no mercado através de pseudônimos e os artistas do mainstream abrindo mão de um tempo do show para os sets de DJ (Barker & Taylor, 2007), resultando em um culto da personalidade do DJ.

Antes, na música erudita, a noção de autor também foi colocada em cheque. Com o surgimento da música concreta e eletrônica de Schaffer e Henry, a figura do intérprete foi substituída pelo operador de som que mixava, equalizava e processava os canais individuais do material musical ao vivo em um novo tipo de interpretação que se assemelha às performances de artistas de projetos de música eletrônica populares e DJs que surgiram posteriormente. No tipo de composição de Schaffer e Henry, também temos semelhanças com as composições atuais baseadas em samples, onde, dependendo da evidência e preponderância do sample utilizado, questiona-se quem é o autor. A autoria pertence ao novo criador ou ao autor do sample original utilizado?

Nota-se, então, um conflito entre criação e recriação que tem o sample como um dos elementos problematizantes principais. O uso não autorizado de um sample quase sempre infringe o copyright da gravação e do autor, levando ao ajuizamento de ações abertas em função do tamanho do sample, sua configuração específica e sua importância qualitativa e quantitativa para o trabalho original (Stim, 2007).

Deve-se considerar as diferenças entre o underground e o mainstream no que concerne a utilização do sample e sua relação com os direitos autorais dos artistas. Uma apropriação indébita de um recurso sonoro que indica a fonte original de forma explícita em uma exposição massiva é um procedimento arriscado por parte do artista/produtor, pois envolve enormes cifras em um panorama sonoro que se torna extremamente visível, chamando a atenção de muitos quanto à originalidade dos motivos utilizados. No caso de produções que não visam o mercado massivo, temos a utilização do sample como uma prática possível, pois não envolve uma exposição intensa e o material sonoro não tem grande visibilidade, em função da restrição da cena onde o material é distribuído, onde os editores e administradores dos direitos autorais do criador provavelmente não notarão sua utilização. Como exemplo, temos o grupo Apollo Four Forty em ‘Ain’t talking ‘bout dub’ que utilizou um sample do grupo Van Halen. Após grande evidência da faixa na mídia, o Apollo Four Forty foi processado com base em leis de direito autoral e, sendo condenado, teve de desembolsar grande quantia financeira.

Teoricamente, a prática do sample é um procedimento judicialmente legal apenas se as citações musicais utilizadas forem licenciadas. Contudo, grande parte do panorama musical se desenvolveu a partir da utilização do sample de forma ilegal e com o advento da tecnologia digital, a prática se popularizou. Porém, percebe-se, com o passar do tempo, que a prática do sample está associada não só à tecnologia que possibilitou o seu desenvolvimento, mas também a uma prática cultural onde a disseminação do conteúdo e sua transformação podem ser percebidas em uma sucessão de estilos e artistas da música popular.

O hit ‘Planet Rock’ pode ser considerado como marco inicial no uso de samples de terceiros em novas composições. O que o diferenciou de seus predecessores foi o uso de trechos musicais não como um medley de hits pop e sim como elementos inter-relacionados em uma nova faixa, o que incluiu a melodia original de ‘Trans Europe Express’ do grupo Kraftwerk quando, antes das gravadoras e artistas terem se organizado para se proteger, a prática do sample tinha um caráter livre. Wolfgang Flür do Kraftwerk demonstrou grande perplexidade ao ouvir samples de suas músicas utilizados por Afrika Bambaata em ‘Planet Rock’. ‘Eles nem perguntaram antes se o Kraftwerk estava de acordo e muito menos pagaram pelo uso dos samples. Este foi o tipo mais sujo de roubo!... Desde a introdução da tecnologia do sample, esta prática passou a ocorrer diariamente na indústria musical’ (Flür, 2000). Assim, foram abertos processos litigiosos por parte dos artistas que se sentiram lesados, como neste caso onde o Kraftwerk entrou com ação judicial pedindo royalties em um conflito que durou muitos anos.

No hip-hop, segundo Brewster & Broughton (1999), a prática do sample atingiu seu pico no final da década de 1980 nas produções do Public Enemy e do De La Soul. Na abertura do disco ‘Fight the power’ do Public Enemy de 1990 em menos de um minuto mais de uma dúzia de samples são utilizados em loops, sobreposições e processamentos diversos. ‘Colocamos loops em cima de loops em cima de loops’ (Chuck D. apud Katz, 2004). Em certos momentos são utilizados até dez loops simultâneos. Os samples utilizados em sua grande maioria são provenientes de músicas de artistas negros, soando como tributos e homenagens. De acordo com Nelson George (apud Brewster & Broughton, 1999), apenas quando os artistas do hip-hop começaram a samplear artistas ‘brancos’, a indústria começou a perceber o problema.

Críticas ao sample focaram a natureza referencial da prática que descartava as habilidades musicais convencionais e o fato dos discos trazerem ‘roubos descarados de sons’. Entusiastas aproveitaram estas acusações como prova do caráter subversivo da prática do sample, sua transgressão dos direitos autorais e um tipo de democratização de estilo punk da prática musical. Em ‘Beats + pieces’ (1987) do Coldcut, temos uma simulação das reações anti-sample em um slogan disposto na capa do disco: ‘desculpe, mas isto não é música’ (Reynolds, 1998).

A nacionalização do funk no Brasil, no começo da década de 1990, com o surgimento de diversas produções com letras em português, segundo Sá (2007), também aconteceu com a utilização preponderante do uso do sample, remetendo a referências diversas, incluindo o Kraftwerk. Como foi percebido e amplamente frisado em palestra fornecida por Hermano Vianna, DJ Marlboro e outros DJs de funk no Oi Futuro em Abril de 2008, no funk, tudo se copia. Um copia a base e o outro copia o processo. Se dependesse da lei dos direitos autorais, o funk não existiria.

Barker, H., Taylor, Y., Faking it: The quest for authenticity in popular music, New York: Norton & Company, 2007.
Brewster, B., Broughton, F., Last night a DJ saved my life: the history of the disc jockey, New York: Groove Press, 1999.
Flür, W., Kraftwerk: I was a robot, London: Sanctuary Publishing, 2000.
Katz, M., Capturing sounds: how technology has changed music, Califórnia: University of Califórnia Press, 2004.
Reynolds, S., Generation Ecstasy: into the world of techno and rave culture, New York: Routledge, 1998.
Sá, S., Funk carioca: música eletrônica popular brasileira ?!, In: Anais do XVI Encontro da COMPÓS, Curitiba: Universidade Tuiuti Paraná, 2007.
Stim, R., Patent, Copyright & Trademark: An intelectual property desk reference, Berkeley: Nolo, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário